segunda-feira, 23 de setembro de 2019

A Ponte de Clary S. McDinery – Início


1897 – Atualmente.
Escuro. Silêncio. Dormência.
            Tudo dura por míseros milissegundos e então, um som agonizante irrompe o nada que a envolvia. Um som que não parecia fazer parte do mundo. O som de uma criatura tão imensa e raivosa, que tudo o que Clary conseguiu fazer em sua presença esmagadora, foi tremer todo o corpo.
            As forças em suas pernas sumiram assim que a coisa se calou de súbito, e ela desabou sobre os joelhos. Vislumbrando, finalmente, a criatura que mais parecia um pesadelo em matéria. O ar sumiu de seus pulmões assim que o gigantesco trio de olhos, focou diretamente em seus olhos inundados por lágrimas de terror.
            O rugido do ser ecoou no vazio e então...
            ­– Querida!? – A voz aveludada de seu marido a traz de volta até sua pequena casa, em sua modesta cama, suando de tanto medo que a atingira. – Querida?
            ­– Aconteceu novamente! – Exclama. Suas mãos trêmulas agarram firmemente o braço esquerdo de Jhon, seu marido. – Tudo novamente!
            Em meio as lágrimas de medo que escorriam de seus olhos, o abraço do homem a quem, anos antes, dera seu coração, acabou por adormece-la outra vez. Mas agora, desfrutava de um sono tranquilo, segura de que Jhon a protegeria daquela... aquilo que perseguia seus sonhos já à longos vinte anos.


1877
Tudo começara quando ainda tinha meros sete anos de idade. Seus pais sempre elogiaram e sentiam orgulho da imaginação fértil que Clary possuía. Esperavam que ela seguisse a carreira do pai como um escritor de sucesso, por isso, presavam tanto sua imaginação.
            Desde pequena era incentivada a imaginar. Sua mãe sempre lia livros de grandes aventuras em terras fictícias distantes, esperando que este pequeno gesto de amor e carinho instigasse a jovem mente da menina.
            Era cruel como tudo tinha se tornado um pesadelo após seu, outrora, divertido aniversário de sete anos. A menina havia se convencido de que o ser humano possuía uma ideia equivocada sobre o que chamavam de monstros, tal como faziam com dragões, basilíscos e outros monstros conhecidos.
            Em um de seus sonhos por terras desconhecidos, ela se lembra exatamente de como tudo aconteceu. Aquela fatídica noite a assombraria pelo resto de sua miserável vida. Clary encontrara uma ponte.
            Mas não era uma ponte qualquer. Aquela ponte em especial a levara à uma terra devastada. Onde nenhum tipo de ser vivo habitava, há eras. As poucas árvores pelo qual passara, estavam mortas e retorcidas em ângulos estranhos. Mas ela, com sua convicção de que os monstros não eram ruins, adentrou a terra podre sem qualquer indício de medo.
            Longos quilômetros ela percorreu sem nenhuma forma de vida encontrar. Nem mesmo o vento ousava soprar naquelas terras, mas ela permanecia tão firme quanto uma pedra. O céu tinha nuvens escuras pontilhadas na vermelhidão que se estendia até onde os olhos podiam alcançar. Não existia sol naquele lugar, pelo menos não amarelo e radiante. Era vermelho quase sangue, coberto tenebrosamente pelas nuvens, o que criava sombras estranhas por toda parte.
            Foi quando tudo parou.
            O céu se apagou feito uma lâmpada que acabava de terminar sua vida útil. Um som surgiu do nada que lá habitava e algo tão imenso quanto um gigante prédio se erguia do chão.
            Os olhos deslumbrados de Clary se erguiam para acompanhar a criatura de que jamais ouvira falar em toda a sua vida. Seu corpo sedia à imensa pressão que de repetente surgiu naquelas terras escuras.
            Grandes pedaços de terra podre caiam do topo do que seria a cabeça da criatura. Não havia com o que comparar aquilo. Era tão grande quanto a própria planície onde se encontrava. Três grandes olhos amarelos-sombrios se abriram então, como se estivesse adormecido por uma quantidade de tempo indeterminada. Era tão escuro quanto a noite, tinha imensos tentáculos saindo de seu corpo fétido e castigado.
            A garotinha não conseguia acreditar no que via e tentava diversas vezes convencer a si mesma de que era somente um sonho ruim. Mas um sonho ruim do qual não conseguia acordar de forma alguma. Sentia então um novo sentimento consumi-la por dentro. Correndo como uma dolorosa corrente elétrica por todo seu corpo, nem mesmo conseguia sentir vergonha da urina que escorria por suas pernas. Não conseguia sequer mover seu corpo para fora dali, na direção da ponte o qual encontrara aquele lugar amaldiçoado. Era desespero que sentia. Era medo. Era terror.
            O ser parecia não parar de crescer. Seus gigantes tentáculos se espalhavam por entre as árvores podres, contorcendo-se feito uma cobra machucada e então uma nova cratera se abria diante de seus olhos aterrorizados, um colossal braço com garras grossas e absurdamente grandes e afiadas. Mas não só um, eram oito. Oito patas imensuravelmente imensas. Aquilo parecia ter acabado de emergir completamente do chão onde devia estar adormecido por décadas incontáveis.
            Os três ameaçadores olhos da coisa fixaram-se na pequena Clary em um milissegundo. O queixo da garota caiu de tal forma que ela mal conseguia senti-lo.
            E então, uma voz ecoou em sua mente.
            Você... é... minha... ponte... para... esta... terra... devastada... – A voz era uma mistura incomum de rosnados e grunhidos, não fazia o menor sentido como ela tinha sido capaz de entende-lo.
            Assim que abriu sua boca para gritar de medo e desespero, o ser parecia contorcer-se para cima e uma enorme cratera de dentes e podridão surgiram e de dentro daquela garganta colossal, um som ecoou.
            O que devia ser um rugido que nunca devia ter existido tremeu o chão sob seus joelhos trêmulos, pedras avermelhadas subiam sem nada para puxá-las.
            O som agonizante que a criatura emitia soava como um grito de milhares de animais morrendo, ao mesmo tempo em que Clary gritava de medo.
            Naquela noite, seus pais precisaram leva-la imediatamente para um hospital, a menina tremia além do normal enquanto chorava de horror, seus olhos antes brilhosos como o de qualquer criança, pareciam ter vislumbrado um crime hediondo de tão aterrorizados. Havia sido uma longa noite para os pais e para sua pequena criança, que necessitou ser sedada para observação.
            O que ela repetia assombraria seus pais e os médicos por anos.
            – Eu... sou... a... ponte... para... esta... terra... devastada...
            Clary repetia continuamente enquanto começava a se acalmar e adormecer, graças a alta dose de sedativo o qual foi, surpreendentemente, submetida.


Seis longos e tenebrosos meses se passaram.
            Clary passava a acordar no meio da noite, chorando e gritando com uma angústia que seus pais jamais tinham visto a menina sentir. Os livros e exercícios de imaginação que seus pais adoravam usar com ela, foram deixados de lado. A menina adquiriu um pavor incomuns aos livros que mais gostava.
            Odiava ir à escola, as outras crianças tinham medo da menina e mantinham distância uma vez que seus pais as instruíram. A escola então resolveu notificar os pais já aflitos de Clary sobre como os outros pais estavam receosos de mandarem seus filhos para estudar perto da garota, agora tida como louca.
            Passou então a estudar em casa e cada vez mais se fechava. Seus olhos antes tão cheios de vida, agora eram cansados e perdidos, como se já tivesse muitos anos de vida.
            Psiquiatras a diagnosticaram com esquizofrenia.
            Clary, perdera sua infância.

1885

            – ...Não sinto mais sua presença, entendo que não estou tão bem da cabeça quanto antigamente, mas mesmo assim, não consigo parar de pensar sobre o que tudo pode significar. – Concluía seu longo pensamento. Estava confortavelmente deitada no divã azul da aconchegante sala de sua psiquiatra, Lara.
            Seu olhar estava tão distante quanto seus indefinidos pensamentos enquanto parecia olhar através da enorme janela lateral do consultório.
            Lara se resumia a encará-la, balançando a caneta tinteiro sobre o prontuário repleto de anotações confusas sobre a garota peculiar a quem atendia desde os míseros oito anos de idade.
            – Se sabe que somente não está tão demasiada bem da cabeça, porque ainda insiste em tentar entender este tipo de coisa? – Sua pergunta ecoou pela sala silenciosa, mas sem uma resposta. A doutora respira fundo ao ajeitar os óculos. – Creio que terminamos aqui, sim?
            Clary, pela primeira vez naquela hora, tirou os olhos da janela para encarar sua médica. Seu olhar era incompreendido. Cansado. Desistente.
            Enquanto a menina se levanta para caminhar, despreocupadamente, até a porta para a sala de espera, doutora Lara não conseguia entender o motivo de tamanha insistência naquele caso perdido. Ela retira os óculos para poder coçar os olhos. Para ela, sua paciente já tinha perdido a sanidade já há muito.
            – Como foi a consulta, minha flor? – A mãe levantava da cadeira de espera, surpresa por ver sua filha antes do momento exato do fim da terapia.
            – Do mesmo jeito. – Clary já havia desistido de tentar explicar o que ouvia e sentia para os outros, uma vez que a tinham como louca.
            O semblante de sua mãe era esperançoso, porém castigado. Não estava nem um pouco feliz por ver sua tão amada filha sendo tratada daquela forma. No fundo, ela sabia que a pequena estava muito doente.

No caminho para casa. A menina nada dizia, nenhum sinal de vida esboçava. Era triste como tudo vinha ocorrendo consigo.
            Ela somente observava as outras adolescentes frequentando escolas, voltando em grupos de amigos e só conseguia suspirar de tristeza. Ao longe, através do vidro da carruagem, olhava para as muitas casas ao longe.
            Sua mente era um completo silêncio. Mas apenas por um mero instante.
            Uma voz ecoava ao longe em sua cabeça. Dizia coisas que ela não conseguia entender, um idioma que não parecia existir nesta terra. A pele de seu pescoço se eriçava como se algo a tocasse com uma leveza absoluta.
            E então pode ouvir perfeitamente, a mesma voz que outrora mudara sua vida para pior.
            Complete... o rito... criança...
            Ela pôde sentir o terror começar a acomete-la. Pôde sentir o desespero começar a percorrer todo o seu corpo. Ao seu lado, a mãe notava que algo estava errado com a menina. Seu olhar estava vidrado através da janela embaçada da manhã de novembro.
            Lágrimas começaram a escorrer de seus olhos e ela gritou.
            Um grito de puro terror, enquanto em sua cabeça, a criatura soltava o som do horror.
            Tudo então escureceu.
            E a última coisa que ela pôde vislumbrar, foi a assombrosa fera de tamanho absurdo, contorcendo seus grandes tentáculos e espumando pelo que parecia ser a própria boca do inferno.

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