Durante as tardes de quinta-feira, Carla costumava
caminhar com seu cachorro enquanto acompanhava a pequena Aira, sua filha de
cinco anos, que andava em sua bicicleta rosa de rodinhas, pela rua pouco
movimentada do novo bairro.
Fazia
pouco mais de uma semana que ela, o marido e a filha haviam chegado. Seu
relacionamento nunca foi muito bem recebido pela família, uma vez que seu
marido já havia cumprido pena por tráfico de drogas, mas ela, há muito, já não
ouvia os pais. A ideia da mudança surgiu com propósito de viverem mais felizes
longe da família exigente dela, e com isso, partiram para o interior.
Aira,
apesar de tudo, normalmente estava sempre alheia às brigas familiares e
discussões que ocorriam o tempo todo. Carla notara que, desde seu nascimento,
Aira não era uma criança muito comum, e mesmo não entendendo bem como sabia
disso, ela sabia. Conforme os dias
iam passando ela via coisas, Aira a olhava estranho, e vez ou outra, achava ter
visto coisas ao redor da menina...
sombras talvez.
Apesar
de todas essas coisas, sua psicóloga garantira para ela, que se tratava apenas do
fruto de sua imaginação. Segundo a doutora, isso acontecia por conta do stress
do primeiro filho em uma situação familiar tensa como a que vivia, ela deveria
apenas repousar. Carla acabou parando de falar sobre tais coisas, pois sabia
que não adiantaria.
Mas as coisas, nunca pararam de acontecer.
Ela
sentia uma aura estranha ao redor da filha quando estavam sozinhas, certa vez,
jurava ter vista as tais sombras “dançando” ao redor da menina sentada no
centro do tapete da sala, e quando a chamou, Aira a encarou com os olhos
puramente negros, e tudo isso durara uma fração de segundos. Tempo o suficiente
para que seu marido, Henry, chegasse na sala com uma xícara de café na mão. Ele
nunca viu nada de estranho na filha. Ao seu ver, ela era apenas mais uma
criança normal fazendo travessuras com a mãe.
Esse
foi o motivo de Carla ter adotado um cachorro, assim ela já não ficava completamente
sozinha com a menina. Ela tinha vergonha de admitir o medo de sua própria cria.
Após
uma volta no bairro, voltaram para casa para tomar um lanche da tarde, como de
costume, enquanto Henry não chegava do trabalho.
– Morango ou maracujá, querida? –
Pergunta sem se virar, terminando os sanduíches.
Aira,
sentada na mesa distante colorindo um desenho que acabara de fazer, não
levantou os olhos da folha.
– Morango, mamãe – sua voz fina
e doce, assustavam Carla, de certa forma. – Vou pendurar o desenho lá no
quarto! – Ela levanta-se animada com o desenho em mãos, e corre para a escada
sem esperar a resposta da mãe.
– Tudo bem! – Ela grita alto da
cozinha, sabendo que a menina já estava longe.
Ao terminar de montar os sanduíches
e fazer o suco, organiza as coisas todas sobre uma toalha quadriculada na mesa.
Antes de chamar a filha para o lanche, decidiu colocar o cão para dentro de
casa. O céu escurecia, dando sinais de que uma tempestade repentina e das
grandes estava para chegar. Ela abre as portas de vidro e calmamente procura
pelo cachorro, que não estava em sua casinha.
– Lord? – Ela não o via. Carla
caminhou pelo quintal procurando o animal. – Vamos, garoto, não é hora de brincadeira
– dizia alto.
“Onde você se meteu?”, pensava começando
a ficar preocupada. Carla sabia que Lord não fugiria assim.
Parou ao ouvir um grunhido curto e
baixo que após alguns segundos se repetiu, ela correu na direção do barulho. E
encontrou o Husky escondido no armário de ferramentas que ficava no quintal,
debaixo de uma bancada. Respirou aliviada ao vê-lo bem.
– Hey, o que aconteceu? – O acariciava
em silêncio.
Um trovão violento foi ouvido, e ela
rapidamente pegou na coleira do animal o puxou na direção da casa, mas Lord começou
a latir desesperado tentando correr na direção contrária, sem a menor vontade
de entrar na casa. Por que aquele comportamento repentino? Ela não sabia. Não
fazia ideia, e pensou que pudesse ser apenas um susto.
Com muito esforço o puxou para dentro
e fechou a porta, mas o cão não parava de latir e rosnar querendo sair da casa. Estranho. Um temporal forte começou a
cair lá fora, com trovões violentos e raios brilhantes cortando os céus. Parada
em frente a porta de vidro, vendo o cachorro desesperado, a chuva e a ventania
forte lá fora, ela recebeu uma mensagem no celular. Era Henry.
Avisando que, por conta da chuva
inesperada, estava preso no trânsito e se atrasaria para voltar naquela tarde.
No mesmo instante, Carla decidiu
chamar a filha para ficar perto dela, apesar de tudo era apenas uma criança que
poderia ficar realmente com medo de estar sozinha em um cômodo daquela casa tão
grande, durante uma chuva tão forte.
Ela deixou o celular sobre a estante
da sala e se direcionou às escadas. Já no topo, no início do enorme corredor de
quartos as luzes piscaram, e Carla decidiu buscar uma lanterna. Rapidamente
desceu as escadas e no armário da sala, pegou uma das lanternas guardadas lá
dentro e se pôs a subir novamente.
No meio do trajeto, ao invés de as
luzes deligarem de uma vez, começar a piscar incessantemente. O cão agora latia
mais alto, com uma agressividade que ela nunca tinha visto Lord ter antes. As
pernas bambeavam agora, no meio do corredor.
Quando conseguiu finalmente chegar na
última porta do corredor, pintada de rosa com desenhos de borboletas coloridas,
as outras portas se abriram sozinhas e Carla congelara de medo. Elas batiam com
violência.
De uma vez, abriu a porta do quarto
de Aira e o que viu a fez gritar. Estava apavorada de tal forma que não
conseguia se mover. A lanterna caiu de sua mão e ela desabou de joelhos. Os
olhos arregalados, as mãos frias e ela suava.
A pequena menina estava sentada no chão,
no centro do tapete rosa felpudo. A lâmpada piscava. As janelas abertas batiam
com a força do misterioso vento que entrava, criando um círculo de folhas mortas
e papéis. Formas sombrias giravam em torno dela. Aira levantou a cabeça que
pendeu para o lado da porta, encarando a mãe com os olhos de tal negritude, que
copiada o próprio vazio, sangue começava a escorrer de seus olhos.
Carla gritou de horror e as luzes se
apagaram de uma vez. Impressionantemente, o teto do quarto se desintegrava e ao
olhar para cima, de sobressalto, o que viu se parecia com o centro de um
tornado, mas um tornado estranhamente negro com centenas de formas escuras
vagando, flutuando em círculos emitindo sussurros incompreensíveis. A menina começou
a falar coisas desconexas, como que se entoasse um cântico em um idioma desconhecido,
que nem deveria existir nesse mundo. Seu corpo se levantou do chão, ela não
parava de repetir aquelas coisas. E abriu os braços.
Um raio negro a acertou em cheio,
com tamanha força que Carla foi arremessada para trás, sua vista embaçou e um
zunido não saía de seus ouvidos pelo estrondo do impacto. Foi quando tudo
escureceu. Tudo ficou silencioso.
O cão já não latia. As luzes
explodiram. O quarto da menina destruído completamente. E as sombras já não estavam
mais lá. Apenas o corpo de Aira estirado no chão. Sem vida.
Após um período imensurável de
tempo, Carla abre os olhos, sentia dor por todo o corpo e não ousava se mover.
Mais à frente, sobre o corpo de sua pequena filha, outra sombra surgia.
Pequena. Densa. Etérea.
Que parecia olhar diretamente para ela.
Podendo olhar através dela.
Carla sentia que algo estava sendo
sugado dela. E seus olhos começaram a pesar, até se fecharem de uma vez.
Aira
nunca pertencera àquele mundo.