domingo, 1 de julho de 2018

A Sentinela - Prólogo

Verão de 1968. Dia calmo e ensolarado crianças se divertindo na rua, brincando com a água que saía do hidrante, jogando-a umas nas outras sem a menor preocupação, pessoas sentadas em suas varandas, com suas cadeiras de balanço, conversando sobre a dureza da vida adulta e da velhice, algumas estavam apenas fofocando sobre alguém, sem darem conta que aquela fofoca chegaria aos ouvidos do “fofocado”.
Conforme o dia se segue, as pessoas vão se recolhendo para suas residências, as mães vêm recolher os seus filhos e a roda de fofoca aos poucos ia se desfazendo.


Em poucas horas a noite iria rasgar os céus com sua escuridão assombrosa. Aquela rua cheia de vida e alegria iria se tornar algo sem vida e esperança, sem crianças brincando com a água, sem adultos conversando... A única coisa viva que restaria, era o silencio tenebroso que caminhava de mãos dadas com a noite vindoura.

A noite finalmente toma conta do céu diurno, trazendo consigo uma lua cheia e brilhante como pérolas, brilhava tanto, que não se podia comparar com a luminescência do sol infernal, trazendo um luar calmo e sereno, como um rio harmonioso. O silêncio daquela noite era algo assustador, nenhuma voz ressoava pelas ruas cheias de medo, mas com o tempo, o cantar dos ventos e a dança calorosa das árvores interrompia aquele clima silencioso, mas o silencio sempre voltava, carregando a atmosfera com medo e desilusão, fazendo aquela linda rua se tornar algo escuro e abissal.

Conforme a noite corria pelas águas do tempo. As pessoas começavam a se preocupar com algo, como sempre ocorria naquelas noites infernais, tal preocupação que as fazia ficar sem sono e sem esperança, trazendo um sentimento que só podia ser sentido por aqueles que contemplaram o próprio diabo em sua frente, fazendo-as esperar por algo que viria, mas não naquela noite.

Elas sentiam em seus ossos que aquela noite não seria como as outras, sentiam que seria mais perturbadora que as anteriores; tal sensação as obrigava a colocar seus filhos para dormir mais cedo; as crianças não entendiam o porquê daquilo, mas entendiam que seus pais estavam preocupados, que algo estava errado e que a única forma de ajudar era dormindo.

As horas foram passando e o silêncio aumentando, as pessoas já não estavam mais preocupadas, pois o sono as atacou de uma forma bárbara, a sensação de que algo iria acontecer havia passado.

Mas em uma casa velha, com madeiras já tão desgastadas e corroendo como um câncer corrói um corpo decadente de uma pessoa enferma, uma casa esquecida entre os arbustos e árvores com galhos retorcidos com formas de garras enegrecidas pelo tempo, casa essa, que pessoas da vizinhança evitavam entrar e passar em frente, pois os antigos a construíram num lugar que não podiam, um lugar cujas almas dos tristes e oprimidos dormem em eterna paz com o cosmo além da nossa realidade, um lugar que antes se tornara um abismo para aqueles que se desvencilhavam do caminho abençoado, cujas lápides, tão pontudas e aterrorizantes, traziam alegria ao lugar, deixando certo tom de beleza suave entre os cadáveres moribundos e cheios de vermes, vermes que os corroem e os penetram como um violentador, comendo sua carne podre e seus ossos corroídos como uma madeira velha, tornando um corpo morto, bem vestido e com esperanças em ir ao paraíso, em um algo mal cheiroso, esburacado com profundidade suficiente para ir ao abismo que os circundam tornando frágeis aqueles ossos antes tão fortes e saudáveis, que no final só restara uma pilha de cinzas mal cheirosas e esquecidas pelo tempo.

Aquele lugar sempre escuro e decadente não poderia ser derrubado, pois os mortos não estão cravados em seu solo.

Mas um dia uma família com pouca condição financeira se mudou para o local, cheios de esperanças de construir um novo lugar encima daquele abismo de pessimismo. Construíram uma casa magnifica e viva, com jardins floridos com as mais belas rosas de toda a região que exalavam um cheiro doce e ao mesmo tempo relaxante aos que se aproximavam, um jardim que circulava a casa inteira, a deixando vermelha como o sangue que corre em nossas veias. Na parte da frente fizeram uma ponte no solo, que corria desde a calçada, até as escadas que faziam sua transição do jardim para a casa. Uma grama verde fora colocada em frente a casa, a tornando verde e incrivelmente viva, uma grama fina e baixa, com insetos e vida microscópica exalando entre suas folhas verdes e serpenteadas. Plantaram duas arvores frutíferas, uma macieira e uma bananeira, uma combinação entre o vermelho escuro do pecado e o amarelo exalante que pairava do glorioso sol, criando assim um aroma único, união entre pecado e perfeição, harmoniosos entre si, fazendo aquela casa se tornar perfumada e sempre cheirosa. Pintaram-na do mais belo azul oceânico, uma cor tão profunda que nem o próprio abismo poderia ser comparado com ela, uma profundidade azulada, que representava fielmente a obscuridade oceânica, fazendo-a desaparecer a noite. Colocaram janelas circulares e extensas, parecendo assim olhos de vidro que vigiavam a vizinhança, janelas que seguiam com suas pupilas escurecidas cada pessoa que ousasse passar por ali, um vidro feito da mais pura harmonia entre o fogo do inferno e a matéria-prima mais pura de toda terra ensanguentada. Colocaram telhas vermelhas como se um coração explodisse em seu meio e vazasse para os lados, assim formando uma chuva que pintava aquelas telhas, caindo sangue avermelhado delas que se fundiam com as rosas abaixo de si. Colocaram cercas em volta da casa para que ninguém ousasse entrar na residência. Cercas tão altas que se pareciam com estacas cravadas no solo, fincadas com tanta violência e frieza que o solo estremeceu, tão altas e grossas, que podiam ser vistas de longe, quase podendo chegar aos céus azulados e esbranquiçados. Pintaram de azul, assim se tornando um com a casa já azulada, quando chegava o anoitecer, a casa desaparecia em seu próprio abismo oceânico, formando um elo de alegria entre seus moradores e um elo de raiva, desgosto e vergonha dos outros vizinhos.

Uma família de três pessoas e um pássaro: Pai, Mãe e filha. Pai que perdera seu emprego devido ao seu agonizante distúrbio mental critico, atacara o próprio chefe com um caco de vidro que pegara após jogar uma cadeira em sua janela, um vidro tão pontiagudo que poderia penetrar as escamas dos mais ferozes dragões de toda a idade média. Após esse ápice de loucura, ele fora despedido e rechaçado de seu serviço, assim perdendo sua carreira promissora como advogado, perdendo tudo que tinha, não conseguiu pagar as contas e a última parcela de sua casa, entrou em depressão profunda, chegando a se enforcar no quarto de sua filha que chegou em tempo para salvá-lo.

Vendo o que seu esposo se tornara, Felipa, sua esposa, toma a frente e sai à procura de um emprego e sustento, tanto para seu companheiro, quanto para sua filha, procurando incessantemente por um trabalho que pagasse bem. Finalmente encontra um emprego, um salário bom, horas de serviço bem reduzidas e sem tempo extra no serviço, mas com uma condição, eles teriam que se mudar para o interior, uma cidadezinha perto da costa, com um penhasco tão alto que se podia comparar com uma cratera, chegando a ter 19 metros de profundidade. Filipa aceita a proposta e se mudam, constroem sua bela casa e vivem felizes como uma família. Até que uma noite, diferente das outras, algo estranho acontece...
Quando Kate filha de Filipa era criança, presenciou algo muito estranho e perturbador para os seus pequeninos olhos infantis: uma criatura assustadora, grande em sua estatura e pesada como ferro retorcido em brasa, com uma aura negra e densa que o envolvia o corpo inteiro como algo que saiu das profundezas do próprio inferno abissal, usando uma mordaça em sua boca poluída por uma raiva feroz que emanava de sua garganta, emitindo grunhidos de sua boca cheia de dentes retorcidos e podres, afiados e pontiagudos como uma espada divina em forma de quarenta dentes monstruosos e mortíferos, envoltos de uma saliva venenosa que ao primeiro toque, apodreceria sua pele. Congelada de terror Kate urina de tanto medo, vendo aquela coisa a observando de longe, a encarando com olhos vermelhos vinho, cheios de raiva e agonia, escorrendo lágrimas do mais puro sangue, fitando-a com desejo, com pensamentos obscuros que nem o mais perturbador dos monstros poderia pensar. Parada ali, observando, esperando por algo, como uma... SENTINELA.

Kate não podia ver o que estava além da mordaça, pois o rosto da coisa estava envolto com a mesma e estava escuro, assim dificultando a sua visão. Após observar Kate, aquela coisa começa a se mover em sua direção, com passadas pesadas o suficiente para esmagar um crânio feito de titânio. A cada passo o chão estremecia. Cada passo deixando um buraco no chão. Um passo... Dois passos... Três passos... Quatro passos. Até que no último passo, Kate pega seu cobertor e se cobre, envolvendo todo o seu corpo com seu lençol branco, mas amarelado e fedido, pois Kate urinou-se de tanto medo. Ligando sua lanterna com forma de borboleta, a mexendo para lá e para cá, fazendo sua sombra projetada dançar por dentro do cobertor, de tanto medo começou a cantar, uma canção confusa e complexa para uma criança, uma canção que emanava do abismo daquela noite: “
Condenando todos ao inferno pelos seus pecados, purificando-os com seu fogo eterno, sedenta por vingança, a justiça te caçará até os confins da morte, não tenham medo jovens crianças, não temam o amanhã, pois o horizonte é brilhante...”. Terminando sua canção, Kate começa a chorar e todas as suas esperanças se vão pelo seu rio de lágrimas escorrido em seu rosto.

Quando a coisa se aproxima da cama, para subitamente, ainda observando a criança cantar e chorar perante sua presença, vislumbrando isso, solta um grito aterrorizante, agonizante e acolhedor, um grito saído das profundezas de sua garganta sangrenta, um grito sofredor, estalando em sua boca cheia de dentes mortíferos e venenosos, gritando em tom de sufocamento, como se algo a apertasse o ventre. Em tom de agonia, a coisa move sua mão direita em direção ao seu resto, uma mão apodrecida e esquelética, dando vista de seus buracos perfurados pelos vermes que o infestam e tornam seu fedor intenso, colocando sua mão devagar em seu rosto pútrido, retira sua mordaça enferrujada e retorcida, e a pendura na cabeceira da cama de Kate, assim revelando seu rosto desforme, mas a criança não teve tal privilégio de vê-lo, pois estava debaixo do lençol. 

Após a coisa parar de gritar com sua voz de agonia, Kate percebe que ela foi embora, ao abaixar seu cobertor, enxuga seus olhos e vislumbra o quarto escuro e sem nada aterrador que pudesse atormentá-la. Ela apenas desliga sua lanterna infantil, deita-se, fecha os olhos lentamente e dorme, como se nada tivesse ocorrido.

Após dormir por quatro longas horas, Kate acorda repentinamente com um barulho vindo do quarto de seus pais, levantando lentamente e coçando os olhos sonolentos, ela se questiona “
que barulho é esse?” Levanta-se, calça suas pantufas de borboletas, e anda em direção ao quarto de seus pais, caminhando pelo corredor que parecia mais profundo e distante a cada passo, Kate começa a sentir um cheiro estranho, como se alguém tivesse vomitado e feito excrementos ao mesmo tempo, após sentir esse cheiro de desesperança ela começa a correr, mas quanto mais se aproximava do quarto de seus pais, mais o corredor se alongava, até que finalmente chega, e o que vê a deixa pasma e esbranquiçada, uma visão que poucas pessoas pretendem ver na vida... Uma visão de morte...

Lá, deitados, jaziam os corpos de seus pais, destroçados e retalhados, cortados pedacinho a pedacinho e postos em forma humanoide na cama. Seu pai estava com um semblante de dor e agonia, com sua boca aberta como se fosse gritar, mas já não podia, pois estavam mortos, seus braços e pernas, órgãos, cabeça estavam todos cortados de uma forma cruel, do jeito que só um monstro sem coração poderia fazer, cortados e postos de forma não humana, braços foram parar no lugar da cabeça formando a letra ípsilon, suas pernas foram parar na barriga de tal forma que ficaria estendida, sua cabeça fora parar onde ficava seu braço direito, seus olhos foram parar onde ficavam os pés e seu coração ainda pulsante fora parar em sua boca, batendo e batendo, assim mostrando onde a vida de seu pai fora parar e terminar.
Decadente e agora ausente.

Sua mãe foi menos brutalizada, morreu de uma forma peculiar, seca, tornando-se uma casca vazia, com sua cabeça despedaça e espalhada pelo quarto, parecia que algo a fez estourar, assim derramando seu sangue por todo quarto, que antes era um verde esbranquiçado, agora se torna o mais puro e profundo vermelho que já existiu, formando uma possa no chão, espessa e pegajosa. Kate não acreditando no que estava vendo começa a chorar e fica imóvel ali por algum tempo, parando de chorar e olhando de novo aquela cena aterradora. Começa a rir, achando que aquilo é só uma brincadeira boba de seus pais, ela sobe na cama, deita-se e continua a sorrir insanamente, pega o braço seco de usa mãe e o envolve em seu ombro, vira-se para o lado de seu pai e o fita, dizendo: Quando eu acordar eles estarão bem, fazendo o meu lanche do café da manhã. Né Papai?

Então ela pega no sono, em meio aquela cena caótica que a rodeava. Ela dorme, em seu abismo profundo que lhe fazia feliz e sonhar.



- Escrito por Kevin Ferreira

Nenhum comentário:

Postar um comentário