segunda-feira, 30 de agosto de 2021

Leviatã


Talvez na terra, talvez no futuro ou até mesmo em outra dimensão. Da próxima vez que olhar para o céu noturno tenha certeza de que as estrelas que você está vendo são aquelas que possuem os nomes dos grandes astrônomos que conhecemos

Da próxima vez que olhar para o norte e ver parte daquele grande arco de ferro que se estende por toda o nosso planeta tenha a certeza de que nenhuma das fendas está aberta, pois quando você atravessa para o Lado Norte o mundo gira ao contrário e como um turbilhão de incertezas, você cai em lugar nenhum e nada do seu treinamento pode te preparar para o que há aqui.

Fui categorizado como Poeta da expedição, pois na concepção dos N.C.X, um poeta em um lugar desconhecido seria o melhor narrador para as massas pobres e sem esperanças. Fui designado a escrever a falsa glória desse lugar. Fedido e cheio de mistérios que nem mesmo o mais inteligente de nossos homens pode sequer conceber uma explicação

O mistério mais incomum e aterrorizador que presenciamos levou três de nossos soldados e toda nossa sensação de sanidade. Tudo que relato aqui aconteceu na cabana das miríades da Nova Zelândia, no meio de nossa jornada para desligar o tal Colisor.

Era fim de tarde e a lua já se estendia por todo o arco da praia. Evento natural incomum, pois, em todo nosso trajeto a lua sempre parecia distante e mais pálida do que antes, mas hoje ela aparenta estar mais perto e observando a gente como se fosse uma grande sentinela cósmica.

Fiquei fora da cabana, retribuindo o mal olhado daquela Lua e notando que o mar e as nuvens se agitavam cada vez que as garras da noite se aproximavam. Começou a chover de repente e, com isso, agarrei meus materiais de escrita e de filmagem junto com meu casaco e voltei para a cabana.

Todo o grupo estava num sono profundo e a insônia infelizmente escolheu-me como vítima daquela noite de luar espasmódico. Observando pela janela a chuva e o luar, comecei a notar que o céu começou a mudar de cor e que a própria lua estava diferente: meio amarela salpicada de vermelho; e os céus com suas nuvens carregadas de água e raios refletindo uma espécie de tom carmesim amarelado. Desde que chegamos aqui aconteceram muitas coisas impossíveis e eventos duvidosos, mas esse evento não era aterrorizador e nem insano, esse evento é a prova de que ainda existe natureza e que Gaia ainda cria suas belas obras de artes ao redor do mundo. Esse Todo cósmico e essas cores em conjunto da madrugada com efeito refletido pela luz da lua, os raios e as nuvens junto do mar revolto formando uma espécie de canção ou, até mesmo, um teatro, encheu meus olhos de satisfação e assim percebo minha ingratidão por reclamar da minha vinda a este local. Poucos poetas terão a chance de vislumbrar algo assim e quem sabe esse seja um evento único antes do total desligamento do Colisor.

Esse evento durou, aproximadamente, um total de duas horas, até que algo mudou em seu todo e a canção do mar se tornou um guincho estridente, como se um ritual estivesse ao fim e que toda aquela cena fosse o tapete vermelho para algo que estivesse vindo.

As nuvens foram se dissipando e o guincho do mar ficara mais forte junto com suas ondas enormes se chocando umas com as outras. Notei que a lua ia ficando mais negra e que uma espécie de névoa fina cobria a maior parte da sua miríade.

Ficando cada vez mais assustado com aquela encenação reparei que a lua estava chegando cada vez mais perto e iluminando cada vez mais aquela noite de total insanidade. O mar cada vez mais revolto e ensandecido com a aproximação da lua começou a se abrir e de seu meio algo saiu.

Uma silhueta gigante e escura em contraste com a insanidade lunar que se aproximava ainda mais. A silhueta que saiu do mar ergueu seus braços em reverência à lua e emitiu um guincho ensurdecedor fazendo o mar a sua volta flutuar, e com isso fazendo a silhueta flutuar junto. Aterrorizado com tudo aquilo tentei acordar meus companheiros, mas quando tentei acordá-los percebi que seus olhos sangravam e que estavam em uma espécie de hipnose, mas como poderia apenas eu estar acordado e presenciar aquele horror?

Voltei para a janela e reparei que a silhueta tinha tentáculos saindo de suas costelas e que a lua estava mais perto do que nunca, a ponto de colidir com a Terra. A silhueta de repente se encolheu e, emitindo um gemido ululante, começou a brilhar em harmonia com o luar, tornando tudo cada vez mais caótico e fazendo minha visão ficar mais difícil, pois parecia que a lua se tornara o próprio.

Vendo toda aquela cena comecei a chorar, pois, não entendia mais nada de tudo aquilo. Acreditando que a lua veio pegar de volta um filho um tanto esquecido, um leviatã que não pertencia a esse mar e que graças ao Colisor ela finalmente pôde descer e tê-lo de volta.

Chorando e perdendo minha mente por completo, reparei que a silhueta estava vindo em direção à nossa cabana emitindo um som ainda mais estridente, fazendo minha cabeça girar em delírios e sons ainda mais ensurdecedores, ela vem chegando mais perto mostrando sua aparência mais nítida à medida. Pelo pouco que consegui ver ela não era humana e nem da terra e que seus olhos eram vermelhos. Vendo tudo aquilo sai correndo da cabana, mas antes de chegar ao nosso carro Ela já havia me alcançado.

Agarrou-me pelo pescoço emitindo uma fala que aparentava ser latim, com seus tentáculos ondulando ao redor de seu corpo, fui erguido até ficar cara a cara com aquilo, encarando aqueles olhos vermelhos e cada vez mais sendo puxado para dentro deles. Estava gritando e chorando, percebo que tudo a minha volta ficava chamuscado e enevoado enquanto perdia minha sanidade e era sugado para dentro dos olhos da coisa e, assim, tudo ficou escuro.

Não existia mar algum...


- Escrito por Kevin Ferreira

segunda-feira, 23 de setembro de 2019

A Ponte de Clary S. McDinery – Início


1897 – Atualmente.
Escuro. Silêncio. Dormência.
            Tudo dura por míseros milissegundos e então, um som agonizante irrompe o nada que a envolvia. Um som que não parecia fazer parte do mundo. O som de uma criatura tão imensa e raivosa, que tudo o que Clary conseguiu fazer em sua presença esmagadora, foi tremer todo o corpo.
            As forças em suas pernas sumiram assim que a coisa se calou de súbito, e ela desabou sobre os joelhos. Vislumbrando, finalmente, a criatura que mais parecia um pesadelo em matéria. O ar sumiu de seus pulmões assim que o gigantesco trio de olhos, focou diretamente em seus olhos inundados por lágrimas de terror.
            O rugido do ser ecoou no vazio e então...
            ­– Querida!? – A voz aveludada de seu marido a traz de volta até sua pequena casa, em sua modesta cama, suando de tanto medo que a atingira. – Querida?
            ­– Aconteceu novamente! – Exclama. Suas mãos trêmulas agarram firmemente o braço esquerdo de Jhon, seu marido. – Tudo novamente!
            Em meio as lágrimas de medo que escorriam de seus olhos, o abraço do homem a quem, anos antes, dera seu coração, acabou por adormece-la outra vez. Mas agora, desfrutava de um sono tranquilo, segura de que Jhon a protegeria daquela... aquilo que perseguia seus sonhos já à longos vinte anos.


1877
Tudo começara quando ainda tinha meros sete anos de idade. Seus pais sempre elogiaram e sentiam orgulho da imaginação fértil que Clary possuía. Esperavam que ela seguisse a carreira do pai como um escritor de sucesso, por isso, presavam tanto sua imaginação.
            Desde pequena era incentivada a imaginar. Sua mãe sempre lia livros de grandes aventuras em terras fictícias distantes, esperando que este pequeno gesto de amor e carinho instigasse a jovem mente da menina.
            Era cruel como tudo tinha se tornado um pesadelo após seu, outrora, divertido aniversário de sete anos. A menina havia se convencido de que o ser humano possuía uma ideia equivocada sobre o que chamavam de monstros, tal como faziam com dragões, basilíscos e outros monstros conhecidos.
            Em um de seus sonhos por terras desconhecidos, ela se lembra exatamente de como tudo aconteceu. Aquela fatídica noite a assombraria pelo resto de sua miserável vida. Clary encontrara uma ponte.
            Mas não era uma ponte qualquer. Aquela ponte em especial a levara à uma terra devastada. Onde nenhum tipo de ser vivo habitava, há eras. As poucas árvores pelo qual passara, estavam mortas e retorcidas em ângulos estranhos. Mas ela, com sua convicção de que os monstros não eram ruins, adentrou a terra podre sem qualquer indício de medo.
            Longos quilômetros ela percorreu sem nenhuma forma de vida encontrar. Nem mesmo o vento ousava soprar naquelas terras, mas ela permanecia tão firme quanto uma pedra. O céu tinha nuvens escuras pontilhadas na vermelhidão que se estendia até onde os olhos podiam alcançar. Não existia sol naquele lugar, pelo menos não amarelo e radiante. Era vermelho quase sangue, coberto tenebrosamente pelas nuvens, o que criava sombras estranhas por toda parte.
            Foi quando tudo parou.
            O céu se apagou feito uma lâmpada que acabava de terminar sua vida útil. Um som surgiu do nada que lá habitava e algo tão imenso quanto um gigante prédio se erguia do chão.
            Os olhos deslumbrados de Clary se erguiam para acompanhar a criatura de que jamais ouvira falar em toda a sua vida. Seu corpo sedia à imensa pressão que de repetente surgiu naquelas terras escuras.
            Grandes pedaços de terra podre caiam do topo do que seria a cabeça da criatura. Não havia com o que comparar aquilo. Era tão grande quanto a própria planície onde se encontrava. Três grandes olhos amarelos-sombrios se abriram então, como se estivesse adormecido por uma quantidade de tempo indeterminada. Era tão escuro quanto a noite, tinha imensos tentáculos saindo de seu corpo fétido e castigado.
            A garotinha não conseguia acreditar no que via e tentava diversas vezes convencer a si mesma de que era somente um sonho ruim. Mas um sonho ruim do qual não conseguia acordar de forma alguma. Sentia então um novo sentimento consumi-la por dentro. Correndo como uma dolorosa corrente elétrica por todo seu corpo, nem mesmo conseguia sentir vergonha da urina que escorria por suas pernas. Não conseguia sequer mover seu corpo para fora dali, na direção da ponte o qual encontrara aquele lugar amaldiçoado. Era desespero que sentia. Era medo. Era terror.
            O ser parecia não parar de crescer. Seus gigantes tentáculos se espalhavam por entre as árvores podres, contorcendo-se feito uma cobra machucada e então uma nova cratera se abria diante de seus olhos aterrorizados, um colossal braço com garras grossas e absurdamente grandes e afiadas. Mas não só um, eram oito. Oito patas imensuravelmente imensas. Aquilo parecia ter acabado de emergir completamente do chão onde devia estar adormecido por décadas incontáveis.
            Os três ameaçadores olhos da coisa fixaram-se na pequena Clary em um milissegundo. O queixo da garota caiu de tal forma que ela mal conseguia senti-lo.
            E então, uma voz ecoou em sua mente.
            Você... é... minha... ponte... para... esta... terra... devastada... – A voz era uma mistura incomum de rosnados e grunhidos, não fazia o menor sentido como ela tinha sido capaz de entende-lo.
            Assim que abriu sua boca para gritar de medo e desespero, o ser parecia contorcer-se para cima e uma enorme cratera de dentes e podridão surgiram e de dentro daquela garganta colossal, um som ecoou.
            O que devia ser um rugido que nunca devia ter existido tremeu o chão sob seus joelhos trêmulos, pedras avermelhadas subiam sem nada para puxá-las.
            O som agonizante que a criatura emitia soava como um grito de milhares de animais morrendo, ao mesmo tempo em que Clary gritava de medo.
            Naquela noite, seus pais precisaram leva-la imediatamente para um hospital, a menina tremia além do normal enquanto chorava de horror, seus olhos antes brilhosos como o de qualquer criança, pareciam ter vislumbrado um crime hediondo de tão aterrorizados. Havia sido uma longa noite para os pais e para sua pequena criança, que necessitou ser sedada para observação.
            O que ela repetia assombraria seus pais e os médicos por anos.
            – Eu... sou... a... ponte... para... esta... terra... devastada...
            Clary repetia continuamente enquanto começava a se acalmar e adormecer, graças a alta dose de sedativo o qual foi, surpreendentemente, submetida.


Seis longos e tenebrosos meses se passaram.
            Clary passava a acordar no meio da noite, chorando e gritando com uma angústia que seus pais jamais tinham visto a menina sentir. Os livros e exercícios de imaginação que seus pais adoravam usar com ela, foram deixados de lado. A menina adquiriu um pavor incomuns aos livros que mais gostava.
            Odiava ir à escola, as outras crianças tinham medo da menina e mantinham distância uma vez que seus pais as instruíram. A escola então resolveu notificar os pais já aflitos de Clary sobre como os outros pais estavam receosos de mandarem seus filhos para estudar perto da garota, agora tida como louca.
            Passou então a estudar em casa e cada vez mais se fechava. Seus olhos antes tão cheios de vida, agora eram cansados e perdidos, como se já tivesse muitos anos de vida.
            Psiquiatras a diagnosticaram com esquizofrenia.
            Clary, perdera sua infância.

1885

            – ...Não sinto mais sua presença, entendo que não estou tão bem da cabeça quanto antigamente, mas mesmo assim, não consigo parar de pensar sobre o que tudo pode significar. – Concluía seu longo pensamento. Estava confortavelmente deitada no divã azul da aconchegante sala de sua psiquiatra, Lara.
            Seu olhar estava tão distante quanto seus indefinidos pensamentos enquanto parecia olhar através da enorme janela lateral do consultório.
            Lara se resumia a encará-la, balançando a caneta tinteiro sobre o prontuário repleto de anotações confusas sobre a garota peculiar a quem atendia desde os míseros oito anos de idade.
            – Se sabe que somente não está tão demasiada bem da cabeça, porque ainda insiste em tentar entender este tipo de coisa? – Sua pergunta ecoou pela sala silenciosa, mas sem uma resposta. A doutora respira fundo ao ajeitar os óculos. – Creio que terminamos aqui, sim?
            Clary, pela primeira vez naquela hora, tirou os olhos da janela para encarar sua médica. Seu olhar era incompreendido. Cansado. Desistente.
            Enquanto a menina se levanta para caminhar, despreocupadamente, até a porta para a sala de espera, doutora Lara não conseguia entender o motivo de tamanha insistência naquele caso perdido. Ela retira os óculos para poder coçar os olhos. Para ela, sua paciente já tinha perdido a sanidade já há muito.
            – Como foi a consulta, minha flor? – A mãe levantava da cadeira de espera, surpresa por ver sua filha antes do momento exato do fim da terapia.
            – Do mesmo jeito. – Clary já havia desistido de tentar explicar o que ouvia e sentia para os outros, uma vez que a tinham como louca.
            O semblante de sua mãe era esperançoso, porém castigado. Não estava nem um pouco feliz por ver sua tão amada filha sendo tratada daquela forma. No fundo, ela sabia que a pequena estava muito doente.

No caminho para casa. A menina nada dizia, nenhum sinal de vida esboçava. Era triste como tudo vinha ocorrendo consigo.
            Ela somente observava as outras adolescentes frequentando escolas, voltando em grupos de amigos e só conseguia suspirar de tristeza. Ao longe, através do vidro da carruagem, olhava para as muitas casas ao longe.
            Sua mente era um completo silêncio. Mas apenas por um mero instante.
            Uma voz ecoava ao longe em sua cabeça. Dizia coisas que ela não conseguia entender, um idioma que não parecia existir nesta terra. A pele de seu pescoço se eriçava como se algo a tocasse com uma leveza absoluta.
            E então pode ouvir perfeitamente, a mesma voz que outrora mudara sua vida para pior.
            Complete... o rito... criança...
            Ela pôde sentir o terror começar a acomete-la. Pôde sentir o desespero começar a percorrer todo o seu corpo. Ao seu lado, a mãe notava que algo estava errado com a menina. Seu olhar estava vidrado através da janela embaçada da manhã de novembro.
            Lágrimas começaram a escorrer de seus olhos e ela gritou.
            Um grito de puro terror, enquanto em sua cabeça, a criatura soltava o som do horror.
            Tudo então escureceu.
            E a última coisa que ela pôde vislumbrar, foi a assombrosa fera de tamanho absurdo, contorcendo seus grandes tentáculos e espumando pelo que parecia ser a própria boca do inferno.

quarta-feira, 4 de julho de 2018

Aira




Durante as tardes de quinta-feira, Carla costumava caminhar com seu cachorro enquanto acompanhava a pequena Aira, sua filha de cinco anos, que andava em sua bicicleta rosa de rodinhas, pela rua pouco movimentada do novo bairro.

            Fazia pouco mais de uma semana que ela, o marido e a filha haviam chegado. Seu relacionamento nunca foi muito bem recebido pela família, uma vez que seu marido já havia cumprido pena por tráfico de drogas, mas ela, há muito, já não ouvia os pais. A ideia da mudança surgiu com propósito de viverem mais felizes longe da família exigente dela, e com isso, partiram para o interior.

            Aira, apesar de tudo, normalmente estava sempre alheia às brigas familiares e discussões que ocorriam o tempo todo. Carla notara que, desde seu nascimento, Aira não era uma criança muito comum, e mesmo não entendendo bem como sabia disso, ela sabia. Conforme os dias iam passando ela via coisas, Aira a olhava estranho, e vez ou outra, achava ter visto coisas ao redor da menina... sombras talvez.

            Apesar de todas essas coisas, sua psicóloga garantira para ela, que se tratava apenas do fruto de sua imaginação. Segundo a doutora, isso acontecia por conta do stress do primeiro filho em uma situação familiar tensa como a que vivia, ela deveria apenas repousar. Carla acabou parando de falar sobre tais coisas, pois sabia que não adiantaria.

            Mas as coisas, nunca pararam de acontecer.

            Ela sentia uma aura estranha ao redor da filha quando estavam sozinhas, certa vez, jurava ter vista as tais sombras “dançando” ao redor da menina sentada no centro do tapete da sala, e quando a chamou, Aira a encarou com os olhos puramente negros, e tudo isso durara uma fração de segundos. Tempo o suficiente para que seu marido, Henry, chegasse na sala com uma xícara de café na mão. Ele nunca viu nada de estranho na filha. Ao seu ver, ela era apenas mais uma criança normal fazendo travessuras com a mãe.

            Esse foi o motivo de Carla ter adotado um cachorro, assim ela já não ficava completamente sozinha com a menina. Ela tinha vergonha de admitir o medo de sua própria cria.

            Após uma volta no bairro, voltaram para casa para tomar um lanche da tarde, como de costume, enquanto Henry não chegava do trabalho.

            – Morango ou maracujá, querida? – Pergunta sem se virar, terminando os sanduíches.

            Aira, sentada na mesa distante colorindo um desenho que acabara de fazer, não levantou os olhos da folha.

            – Morango, mamãe – sua voz fina e doce, assustavam Carla, de certa forma. – Vou pendurar o desenho lá no quarto! – Ela levanta-se animada com o desenho em mãos, e corre para a escada sem esperar a resposta da mãe.

            – Tudo bem! – Ela grita alto da cozinha, sabendo que a menina já estava longe.

            Ao terminar de montar os sanduíches e fazer o suco, organiza as coisas todas sobre uma toalha quadriculada na mesa. Antes de chamar a filha para o lanche, decidiu colocar o cão para dentro de casa. O céu escurecia, dando sinais de que uma tempestade repentina e das grandes estava para chegar. Ela abre as portas de vidro e calmamente procura pelo cachorro, que não estava em sua casinha.

            – Lord? – Ela não o via. Carla caminhou pelo quintal procurando o animal. – Vamos, garoto, não é hora de brincadeira – dizia alto.

            “Onde você se meteu?”, pensava começando a ficar preocupada. Carla sabia que Lord não fugiria assim.

            Parou ao ouvir um grunhido curto e baixo que após alguns segundos se repetiu, ela correu na direção do barulho. E encontrou o Husky escondido no armário de ferramentas que ficava no quintal, debaixo de uma bancada. Respirou aliviada ao vê-lo bem.

            – Hey, o que aconteceu? – O acariciava em silêncio.

            Um trovão violento foi ouvido, e ela rapidamente pegou na coleira do animal o puxou na direção da casa, mas Lord começou a latir desesperado tentando correr na direção contrária, sem a menor vontade de entrar na casa. Por que aquele comportamento repentino? Ela não sabia. Não fazia ideia, e pensou que pudesse ser apenas um susto.

            Com muito esforço o puxou para dentro e fechou a porta, mas o cão não parava de latir e rosnar querendo sair da casa. Estranho. Um temporal forte começou a cair lá fora, com trovões violentos e raios brilhantes cortando os céus. Parada em frente a porta de vidro, vendo o cachorro desesperado, a chuva e a ventania forte lá fora, ela recebeu uma mensagem no celular. Era Henry.

            Avisando que, por conta da chuva inesperada, estava preso no trânsito e se atrasaria para voltar naquela tarde.

            No mesmo instante, Carla decidiu chamar a filha para ficar perto dela, apesar de tudo era apenas uma criança que poderia ficar realmente com medo de estar sozinha em um cômodo daquela casa tão grande, durante uma chuva tão forte.

            Ela deixou o celular sobre a estante da sala e se direcionou às escadas. Já no topo, no início do enorme corredor de quartos as luzes piscaram, e Carla decidiu buscar uma lanterna. Rapidamente desceu as escadas e no armário da sala, pegou uma das lanternas guardadas lá dentro e se pôs a subir novamente.

            No meio do trajeto, ao invés de as luzes deligarem de uma vez, começar a piscar incessantemente. O cão agora latia mais alto, com uma agressividade que ela nunca tinha visto Lord ter antes. As pernas bambeavam agora, no meio do corredor.

            Quando conseguiu finalmente chegar na última porta do corredor, pintada de rosa com desenhos de borboletas coloridas, as outras portas se abriram sozinhas e Carla congelara de medo. Elas batiam com violência.

            De uma vez, abriu a porta do quarto de Aira e o que viu a fez gritar. Estava apavorada de tal forma que não conseguia se mover. A lanterna caiu de sua mão e ela desabou de joelhos. Os olhos arregalados, as mãos frias e ela suava.

            A pequena menina estava sentada no chão, no centro do tapete rosa felpudo. A lâmpada piscava. As janelas abertas batiam com a força do misterioso vento que entrava, criando um círculo de folhas mortas e papéis. Formas sombrias giravam em torno dela. Aira levantou a cabeça que pendeu para o lado da porta, encarando a mãe com os olhos de tal negritude, que copiada o próprio vazio, sangue começava a escorrer de seus olhos.

            Carla gritou de horror e as luzes se apagaram de uma vez. Impressionantemente, o teto do quarto se desintegrava e ao olhar para cima, de sobressalto, o que viu se parecia com o centro de um tornado, mas um tornado estranhamente negro com centenas de formas escuras vagando, flutuando em círculos emitindo sussurros incompreensíveis. A menina começou a falar coisas desconexas, como que se entoasse um cântico em um idioma desconhecido, que nem deveria existir nesse mundo. Seu corpo se levantou do chão, ela não parava de repetir aquelas coisas. E abriu os braços.

            Um raio negro a acertou em cheio, com tamanha força que Carla foi arremessada para trás, sua vista embaçou e um zunido não saía de seus ouvidos pelo estrondo do impacto. Foi quando tudo escureceu. Tudo ficou silencioso.

            O cão já não latia. As luzes explodiram. O quarto da menina destruído completamente. E as sombras já não estavam mais lá. Apenas o corpo de Aira estirado no chão. Sem vida.

            Após um período imensurável de tempo, Carla abre os olhos, sentia dor por todo o corpo e não ousava se mover. Mais à frente, sobre o corpo de sua pequena filha, outra sombra surgia.

            Pequena. Densa. Etérea.

            Que parecia olhar diretamente para ela. Podendo olhar através dela.

            Carla sentia que algo estava sendo sugado dela. E seus olhos começaram a pesar, até se fecharem de uma vez.

            Aira nunca pertencera àquele mundo.

domingo, 1 de julho de 2018

A Sentinela - Prólogo

Verão de 1968. Dia calmo e ensolarado crianças se divertindo na rua, brincando com a água que saía do hidrante, jogando-a umas nas outras sem a menor preocupação, pessoas sentadas em suas varandas, com suas cadeiras de balanço, conversando sobre a dureza da vida adulta e da velhice, algumas estavam apenas fofocando sobre alguém, sem darem conta que aquela fofoca chegaria aos ouvidos do “fofocado”.
Conforme o dia se segue, as pessoas vão se recolhendo para suas residências, as mães vêm recolher os seus filhos e a roda de fofoca aos poucos ia se desfazendo.


Em poucas horas a noite iria rasgar os céus com sua escuridão assombrosa. Aquela rua cheia de vida e alegria iria se tornar algo sem vida e esperança, sem crianças brincando com a água, sem adultos conversando... A única coisa viva que restaria, era o silencio tenebroso que caminhava de mãos dadas com a noite vindoura.

A noite finalmente toma conta do céu diurno, trazendo consigo uma lua cheia e brilhante como pérolas, brilhava tanto, que não se podia comparar com a luminescência do sol infernal, trazendo um luar calmo e sereno, como um rio harmonioso. O silêncio daquela noite era algo assustador, nenhuma voz ressoava pelas ruas cheias de medo, mas com o tempo, o cantar dos ventos e a dança calorosa das árvores interrompia aquele clima silencioso, mas o silencio sempre voltava, carregando a atmosfera com medo e desilusão, fazendo aquela linda rua se tornar algo escuro e abissal.

Conforme a noite corria pelas águas do tempo. As pessoas começavam a se preocupar com algo, como sempre ocorria naquelas noites infernais, tal preocupação que as fazia ficar sem sono e sem esperança, trazendo um sentimento que só podia ser sentido por aqueles que contemplaram o próprio diabo em sua frente, fazendo-as esperar por algo que viria, mas não naquela noite.

Elas sentiam em seus ossos que aquela noite não seria como as outras, sentiam que seria mais perturbadora que as anteriores; tal sensação as obrigava a colocar seus filhos para dormir mais cedo; as crianças não entendiam o porquê daquilo, mas entendiam que seus pais estavam preocupados, que algo estava errado e que a única forma de ajudar era dormindo.

As horas foram passando e o silêncio aumentando, as pessoas já não estavam mais preocupadas, pois o sono as atacou de uma forma bárbara, a sensação de que algo iria acontecer havia passado.

Mas em uma casa velha, com madeiras já tão desgastadas e corroendo como um câncer corrói um corpo decadente de uma pessoa enferma, uma casa esquecida entre os arbustos e árvores com galhos retorcidos com formas de garras enegrecidas pelo tempo, casa essa, que pessoas da vizinhança evitavam entrar e passar em frente, pois os antigos a construíram num lugar que não podiam, um lugar cujas almas dos tristes e oprimidos dormem em eterna paz com o cosmo além da nossa realidade, um lugar que antes se tornara um abismo para aqueles que se desvencilhavam do caminho abençoado, cujas lápides, tão pontudas e aterrorizantes, traziam alegria ao lugar, deixando certo tom de beleza suave entre os cadáveres moribundos e cheios de vermes, vermes que os corroem e os penetram como um violentador, comendo sua carne podre e seus ossos corroídos como uma madeira velha, tornando um corpo morto, bem vestido e com esperanças em ir ao paraíso, em um algo mal cheiroso, esburacado com profundidade suficiente para ir ao abismo que os circundam tornando frágeis aqueles ossos antes tão fortes e saudáveis, que no final só restara uma pilha de cinzas mal cheirosas e esquecidas pelo tempo.

Aquele lugar sempre escuro e decadente não poderia ser derrubado, pois os mortos não estão cravados em seu solo.

Mas um dia uma família com pouca condição financeira se mudou para o local, cheios de esperanças de construir um novo lugar encima daquele abismo de pessimismo. Construíram uma casa magnifica e viva, com jardins floridos com as mais belas rosas de toda a região que exalavam um cheiro doce e ao mesmo tempo relaxante aos que se aproximavam, um jardim que circulava a casa inteira, a deixando vermelha como o sangue que corre em nossas veias. Na parte da frente fizeram uma ponte no solo, que corria desde a calçada, até as escadas que faziam sua transição do jardim para a casa. Uma grama verde fora colocada em frente a casa, a tornando verde e incrivelmente viva, uma grama fina e baixa, com insetos e vida microscópica exalando entre suas folhas verdes e serpenteadas. Plantaram duas arvores frutíferas, uma macieira e uma bananeira, uma combinação entre o vermelho escuro do pecado e o amarelo exalante que pairava do glorioso sol, criando assim um aroma único, união entre pecado e perfeição, harmoniosos entre si, fazendo aquela casa se tornar perfumada e sempre cheirosa. Pintaram-na do mais belo azul oceânico, uma cor tão profunda que nem o próprio abismo poderia ser comparado com ela, uma profundidade azulada, que representava fielmente a obscuridade oceânica, fazendo-a desaparecer a noite. Colocaram janelas circulares e extensas, parecendo assim olhos de vidro que vigiavam a vizinhança, janelas que seguiam com suas pupilas escurecidas cada pessoa que ousasse passar por ali, um vidro feito da mais pura harmonia entre o fogo do inferno e a matéria-prima mais pura de toda terra ensanguentada. Colocaram telhas vermelhas como se um coração explodisse em seu meio e vazasse para os lados, assim formando uma chuva que pintava aquelas telhas, caindo sangue avermelhado delas que se fundiam com as rosas abaixo de si. Colocaram cercas em volta da casa para que ninguém ousasse entrar na residência. Cercas tão altas que se pareciam com estacas cravadas no solo, fincadas com tanta violência e frieza que o solo estremeceu, tão altas e grossas, que podiam ser vistas de longe, quase podendo chegar aos céus azulados e esbranquiçados. Pintaram de azul, assim se tornando um com a casa já azulada, quando chegava o anoitecer, a casa desaparecia em seu próprio abismo oceânico, formando um elo de alegria entre seus moradores e um elo de raiva, desgosto e vergonha dos outros vizinhos.

Uma família de três pessoas e um pássaro: Pai, Mãe e filha. Pai que perdera seu emprego devido ao seu agonizante distúrbio mental critico, atacara o próprio chefe com um caco de vidro que pegara após jogar uma cadeira em sua janela, um vidro tão pontiagudo que poderia penetrar as escamas dos mais ferozes dragões de toda a idade média. Após esse ápice de loucura, ele fora despedido e rechaçado de seu serviço, assim perdendo sua carreira promissora como advogado, perdendo tudo que tinha, não conseguiu pagar as contas e a última parcela de sua casa, entrou em depressão profunda, chegando a se enforcar no quarto de sua filha que chegou em tempo para salvá-lo.

Vendo o que seu esposo se tornara, Felipa, sua esposa, toma a frente e sai à procura de um emprego e sustento, tanto para seu companheiro, quanto para sua filha, procurando incessantemente por um trabalho que pagasse bem. Finalmente encontra um emprego, um salário bom, horas de serviço bem reduzidas e sem tempo extra no serviço, mas com uma condição, eles teriam que se mudar para o interior, uma cidadezinha perto da costa, com um penhasco tão alto que se podia comparar com uma cratera, chegando a ter 19 metros de profundidade. Filipa aceita a proposta e se mudam, constroem sua bela casa e vivem felizes como uma família. Até que uma noite, diferente das outras, algo estranho acontece...
Quando Kate filha de Filipa era criança, presenciou algo muito estranho e perturbador para os seus pequeninos olhos infantis: uma criatura assustadora, grande em sua estatura e pesada como ferro retorcido em brasa, com uma aura negra e densa que o envolvia o corpo inteiro como algo que saiu das profundezas do próprio inferno abissal, usando uma mordaça em sua boca poluída por uma raiva feroz que emanava de sua garganta, emitindo grunhidos de sua boca cheia de dentes retorcidos e podres, afiados e pontiagudos como uma espada divina em forma de quarenta dentes monstruosos e mortíferos, envoltos de uma saliva venenosa que ao primeiro toque, apodreceria sua pele. Congelada de terror Kate urina de tanto medo, vendo aquela coisa a observando de longe, a encarando com olhos vermelhos vinho, cheios de raiva e agonia, escorrendo lágrimas do mais puro sangue, fitando-a com desejo, com pensamentos obscuros que nem o mais perturbador dos monstros poderia pensar. Parada ali, observando, esperando por algo, como uma... SENTINELA.

Kate não podia ver o que estava além da mordaça, pois o rosto da coisa estava envolto com a mesma e estava escuro, assim dificultando a sua visão. Após observar Kate, aquela coisa começa a se mover em sua direção, com passadas pesadas o suficiente para esmagar um crânio feito de titânio. A cada passo o chão estremecia. Cada passo deixando um buraco no chão. Um passo... Dois passos... Três passos... Quatro passos. Até que no último passo, Kate pega seu cobertor e se cobre, envolvendo todo o seu corpo com seu lençol branco, mas amarelado e fedido, pois Kate urinou-se de tanto medo. Ligando sua lanterna com forma de borboleta, a mexendo para lá e para cá, fazendo sua sombra projetada dançar por dentro do cobertor, de tanto medo começou a cantar, uma canção confusa e complexa para uma criança, uma canção que emanava do abismo daquela noite: “
Condenando todos ao inferno pelos seus pecados, purificando-os com seu fogo eterno, sedenta por vingança, a justiça te caçará até os confins da morte, não tenham medo jovens crianças, não temam o amanhã, pois o horizonte é brilhante...”. Terminando sua canção, Kate começa a chorar e todas as suas esperanças se vão pelo seu rio de lágrimas escorrido em seu rosto.

Quando a coisa se aproxima da cama, para subitamente, ainda observando a criança cantar e chorar perante sua presença, vislumbrando isso, solta um grito aterrorizante, agonizante e acolhedor, um grito saído das profundezas de sua garganta sangrenta, um grito sofredor, estalando em sua boca cheia de dentes mortíferos e venenosos, gritando em tom de sufocamento, como se algo a apertasse o ventre. Em tom de agonia, a coisa move sua mão direita em direção ao seu resto, uma mão apodrecida e esquelética, dando vista de seus buracos perfurados pelos vermes que o infestam e tornam seu fedor intenso, colocando sua mão devagar em seu rosto pútrido, retira sua mordaça enferrujada e retorcida, e a pendura na cabeceira da cama de Kate, assim revelando seu rosto desforme, mas a criança não teve tal privilégio de vê-lo, pois estava debaixo do lençol. 

Após a coisa parar de gritar com sua voz de agonia, Kate percebe que ela foi embora, ao abaixar seu cobertor, enxuga seus olhos e vislumbra o quarto escuro e sem nada aterrador que pudesse atormentá-la. Ela apenas desliga sua lanterna infantil, deita-se, fecha os olhos lentamente e dorme, como se nada tivesse ocorrido.

Após dormir por quatro longas horas, Kate acorda repentinamente com um barulho vindo do quarto de seus pais, levantando lentamente e coçando os olhos sonolentos, ela se questiona “
que barulho é esse?” Levanta-se, calça suas pantufas de borboletas, e anda em direção ao quarto de seus pais, caminhando pelo corredor que parecia mais profundo e distante a cada passo, Kate começa a sentir um cheiro estranho, como se alguém tivesse vomitado e feito excrementos ao mesmo tempo, após sentir esse cheiro de desesperança ela começa a correr, mas quanto mais se aproximava do quarto de seus pais, mais o corredor se alongava, até que finalmente chega, e o que vê a deixa pasma e esbranquiçada, uma visão que poucas pessoas pretendem ver na vida... Uma visão de morte...

Lá, deitados, jaziam os corpos de seus pais, destroçados e retalhados, cortados pedacinho a pedacinho e postos em forma humanoide na cama. Seu pai estava com um semblante de dor e agonia, com sua boca aberta como se fosse gritar, mas já não podia, pois estavam mortos, seus braços e pernas, órgãos, cabeça estavam todos cortados de uma forma cruel, do jeito que só um monstro sem coração poderia fazer, cortados e postos de forma não humana, braços foram parar no lugar da cabeça formando a letra ípsilon, suas pernas foram parar na barriga de tal forma que ficaria estendida, sua cabeça fora parar onde ficava seu braço direito, seus olhos foram parar onde ficavam os pés e seu coração ainda pulsante fora parar em sua boca, batendo e batendo, assim mostrando onde a vida de seu pai fora parar e terminar.
Decadente e agora ausente.

Sua mãe foi menos brutalizada, morreu de uma forma peculiar, seca, tornando-se uma casca vazia, com sua cabeça despedaça e espalhada pelo quarto, parecia que algo a fez estourar, assim derramando seu sangue por todo quarto, que antes era um verde esbranquiçado, agora se torna o mais puro e profundo vermelho que já existiu, formando uma possa no chão, espessa e pegajosa. Kate não acreditando no que estava vendo começa a chorar e fica imóvel ali por algum tempo, parando de chorar e olhando de novo aquela cena aterradora. Começa a rir, achando que aquilo é só uma brincadeira boba de seus pais, ela sobe na cama, deita-se e continua a sorrir insanamente, pega o braço seco de usa mãe e o envolve em seu ombro, vira-se para o lado de seu pai e o fita, dizendo: Quando eu acordar eles estarão bem, fazendo o meu lanche do café da manhã. Né Papai?

Então ela pega no sono, em meio aquela cena caótica que a rodeava. Ela dorme, em seu abismo profundo que lhe fazia feliz e sonhar.



- Escrito por Kevin Ferreira

sexta-feira, 29 de junho de 2018

A Casa ao Lado - O final




    Nem todos os tipos de pessoas levantam suspeitas sobre alguma coisa. Ninguém suspeitaria de um cara bonito, na faixa dos vinte ou trinta anos, bem vestido e boa pinta. Mas qualquer um que observasse uma pessoa dessas vivendo só em uma casa pouco cuidada e que dirige um carro velho e enferrujado, suspeitaria de algo. Porém, nem todos naquele bairro observavam tão bem quanto a jovem Emily.

    Ela queria descobrir de uma vez o que o homem fazia naquela casa, mas não podia tentar fazer isso usando uma aproximação casual. Sentia ser perigoso de mais.

    Emily permaneceu observando do jeito que estava fazendo e no dia seguinte, um sábado ensolarado, ela levou o cachorro para passear novamente. Sua tia estava ficando animada com aquilo, apesar de achar estranho. Ela sempre deixava a estranheza de lado quando pensava que a pequena sobrinha poderia estar apenas desenvolvendo algum afeto pelo animal de estimação. Sendo isso ou não, ainda era muito cedo para ter certeza de qualquer coisa.

      Sendo 15:40 da tarde, Emily sabia que o vizinho não estaria em casa e aproveitando que quase ninguém estava na rua naquele horário, ela decidiu se aproximar um pouco mais da janela que dava vista para a sala de estar repleta de cadeiras estranhas.

    Pôs-se então, a caminhar lentamente pelo gramado do vizinho, sentindo, a cada passo, uma tensão florescer. O cão passou a andar mais cautelosamente um pouco mais a frente dela.

    Ao estar perto o suficiente da janela para tocá-la, a adolescente observou com fervor a sala de decoração rústica e simples. As cadeiras eram mais estranhas ainda vistas de perto. Dispostas irregularmente pela sala, deixava o ambiente levemente sombrio. Quando o cão recuou e começou a latir para a janela, ela achou melhor voltar antes que alguém a visse.

    Ela deu meia volta a tempo de chegar na porta de casa no instante em que vira o carro do vizinho dobrar a esquina para voltar a casa. Emily estranhou. Passara tanto tempo assim observando a sala?

    Já passava das sete da noite e a jovem se encontrava sentada em sua cama analisando seu quadro de informações. Ela nunca descobriria o que acontecia na casa ao lado se ficasse apenas olhando. Precisava encontrar uma forma de entrar. O vizinho parecia ser muito gente boa, então, se simplesmente fizesse papel de criança sem ter o que fazer ele poderia chamá-la para um chá. Parece que teria que usar a aproximação casual de qualquer forma. Mas tentaria isso no dia seguinte. Estava um pouco tarde para investir.

    (...)

    Domingo, três da tarde em ponto.

    Depois que o vizinho a encontrara olhando através de sua janela, realmente a convidara para um chá com biscoitos, movida a curiosidade, ela aceitou de pronto.

    Ao entrar na casa sendo seguida pelo homem, que agora tinha um nome o qual poderia chamá-lo: Richard; Emily sentiu-se tensa quando entrou na sala. O homem pediu que aguardasse na sala para que ele pudesse buscar as coisas, ela então, sentou-se no sofá de couro preto e colocou-se a observar mais ainda. Seus olhos de falcão passavam por todo o cômodo, guardando o máximo de informações que conseguisse.

    – Desculpe, fazê-la esperar – Richard chegara sorrindo, carregando uma bandeja cheia de coisas que deixou sobre a mesa de centro. – Não sabia de qual chá gostava então trouxe três. Qual prefere?

    – Camomila. – Emily sempre contida e desconfiada.

    Ele então serviu-a e em seguida encheu uma xícara de café preto para si, finalmente acomodando-se em sua poltrona. Emily notara o nível de sua calmaria.

    – Você não é muito de conversar, não é mesmo?

    – Não.

    – Certo. Eu era como você na infância. – Comentou. – Tem muitos amigos no colégio?

    – Eu não frequento a escola.

    Emily tomou um gole de seu chá e calou-se. Um momento de silêncio se fez presente. Richard pousou a xícara agora vazia sobre a bandeja na mesa de centro.

    – Sabe, Emily, eu percebi que anda a observar-me – a jovem fitou-o. – Sabe, eu não gosto nenhum pouco de ser observado obsessivamente como você vem fazendo faz seis meses. – Ele suspirou. – Eu tenho muito problema com isso. Vou te contar uma história: houve um tempo em que eu fui noivo de uma moça e tinha uma mulher no meu trabalho que era louca por mim e por isso me observava muito. Um dia ela me atacou no trabalho e eu acabei traindo a minha noiva, mas então pensei "se ninguém souber, nada acontece". Eu sumi com ela. E realmente funcionou muito bem, até uma segurança achar o momento todo registrado em um vídeo de uma câmera de segurança, ela ia espalhar sobre isso então tive que dar um jeito também. E tudo estava indo bem de novo, sabe? Mas aí algumas pessoas começaram a descobrir outras coisas sobre mim e eu precisei agir novamente.

    Richard levantou-se e colocou-se a andar em círculos pela sala. Emily permanecia quieta, sua mente estava a mil. "O que ele fez com essas pessoas?".

    – A minha família acabou descobrindo sobre as coisas que eu fiz e eu tive que consertar a situação. – Richard gesticulava muito enquanto falava. Um brilho estranho nublava seu olhar.

    – Eu tenho que ir para casa – Emily deixou a xícara na bandeja e levantou-se afim de sair dali.

    – Eu mudei de cidade, Emily, e descobri uma nova forma de arte – ele impedia que ela saísse apenas com um olhar, Emily sentou-se novamente. – Eu mesmo fiz estas cadeiras se isso te causa tanta intriga.

    Ele passou as mãos levemente sobre o encosto de uma das cadeiras. A adolescente passou a encaixar as peças do quebra-cabeça.

    – Eu busco o material necessário a cada duas semanas em um lugar que não posso falar muito sobre. – Ele sorriu para ela. – Eu gostaria muito de tê-la conosco, Emily. Você é belo material.

    O sorriso de Richard tornara-se tão sombrio quanto doentio e de uma única vez tudo passou a fazer sentido para a jovem Emily. Ela mal pensou ao pegar a faca de pão da bandeja e enfiá-la no sofá repetidas vezes para então puxar com desespero o forro do mesmo. Richard sorria observando a adolescente finalmente entendendo o que acontecia ali.

    Emily quase caiu para trás quando abriu um buraco no sofá. Seu coração batia tão rápido que ela sentia-se tonta.

    Sob o forro do sofá de couro, escondido pelo enchimento fofo haviam ossos.

    Ossos humanos emendados formando o esqueleto do sofá inteiro. Sem ao menos pensar direito, correu e arrancou o estofado de uma das cadeiras próximas e encontrou a mesma coisa. Ossos.

    Tudo fazia sentido agora. Ele realmente não buscava ração toda semana, ele encomendava corpos. Os sacos de lixo malcheiroso estavam cheios de couro e pele humana que ele descartava, já o churrasco...

    Emily sentia o estômago revirar.

    Ela levantou e correu para a porta, mas antes que pudesse abri-la, Richard a segurou por trás. Ela tentou gritar, mas ele tapou-lhe a boca. Tudo que podia ouvir eram os latidos do cachorro do outro lado da porta trancada. Emily foi arrastada para o porão da casa e depois de ver todas aquelas ferramentas e restos dos corpos usados na confecção das cadeiras e provavelmente todos os móveis da casa, tudo ficou escuro.

    (...)

    Emily estava sumida por mais de três meses quando vários indícios e algumas poucas testemunhas levaram a polícia até a casa do vizinho Richard. Nada teria sido encontrado se o cachorro não se recusasse a sair do lado de uma cadeira bonita e decorada em tons de azul e cinza.

    Dentro da casa foram encontradas mais de 50 ossadas de pessoas diferentes, transformados em móveis, principalmente cadeiras. Inclusive, a família dele. Além disso, outras peças produzidas por ele foram encontradas em muitos outros lugares da cidade.

    Richard foi condenado à pena de morte pelo assassinato de mais 90 pessoas.