quarta-feira, 4 de julho de 2018

Aira




Durante as tardes de quinta-feira, Carla costumava caminhar com seu cachorro enquanto acompanhava a pequena Aira, sua filha de cinco anos, que andava em sua bicicleta rosa de rodinhas, pela rua pouco movimentada do novo bairro.

            Fazia pouco mais de uma semana que ela, o marido e a filha haviam chegado. Seu relacionamento nunca foi muito bem recebido pela família, uma vez que seu marido já havia cumprido pena por tráfico de drogas, mas ela, há muito, já não ouvia os pais. A ideia da mudança surgiu com propósito de viverem mais felizes longe da família exigente dela, e com isso, partiram para o interior.

            Aira, apesar de tudo, normalmente estava sempre alheia às brigas familiares e discussões que ocorriam o tempo todo. Carla notara que, desde seu nascimento, Aira não era uma criança muito comum, e mesmo não entendendo bem como sabia disso, ela sabia. Conforme os dias iam passando ela via coisas, Aira a olhava estranho, e vez ou outra, achava ter visto coisas ao redor da menina... sombras talvez.

            Apesar de todas essas coisas, sua psicóloga garantira para ela, que se tratava apenas do fruto de sua imaginação. Segundo a doutora, isso acontecia por conta do stress do primeiro filho em uma situação familiar tensa como a que vivia, ela deveria apenas repousar. Carla acabou parando de falar sobre tais coisas, pois sabia que não adiantaria.

            Mas as coisas, nunca pararam de acontecer.

            Ela sentia uma aura estranha ao redor da filha quando estavam sozinhas, certa vez, jurava ter vista as tais sombras “dançando” ao redor da menina sentada no centro do tapete da sala, e quando a chamou, Aira a encarou com os olhos puramente negros, e tudo isso durara uma fração de segundos. Tempo o suficiente para que seu marido, Henry, chegasse na sala com uma xícara de café na mão. Ele nunca viu nada de estranho na filha. Ao seu ver, ela era apenas mais uma criança normal fazendo travessuras com a mãe.

            Esse foi o motivo de Carla ter adotado um cachorro, assim ela já não ficava completamente sozinha com a menina. Ela tinha vergonha de admitir o medo de sua própria cria.

            Após uma volta no bairro, voltaram para casa para tomar um lanche da tarde, como de costume, enquanto Henry não chegava do trabalho.

            – Morango ou maracujá, querida? – Pergunta sem se virar, terminando os sanduíches.

            Aira, sentada na mesa distante colorindo um desenho que acabara de fazer, não levantou os olhos da folha.

            – Morango, mamãe – sua voz fina e doce, assustavam Carla, de certa forma. – Vou pendurar o desenho lá no quarto! – Ela levanta-se animada com o desenho em mãos, e corre para a escada sem esperar a resposta da mãe.

            – Tudo bem! – Ela grita alto da cozinha, sabendo que a menina já estava longe.

            Ao terminar de montar os sanduíches e fazer o suco, organiza as coisas todas sobre uma toalha quadriculada na mesa. Antes de chamar a filha para o lanche, decidiu colocar o cão para dentro de casa. O céu escurecia, dando sinais de que uma tempestade repentina e das grandes estava para chegar. Ela abre as portas de vidro e calmamente procura pelo cachorro, que não estava em sua casinha.

            – Lord? – Ela não o via. Carla caminhou pelo quintal procurando o animal. – Vamos, garoto, não é hora de brincadeira – dizia alto.

            “Onde você se meteu?”, pensava começando a ficar preocupada. Carla sabia que Lord não fugiria assim.

            Parou ao ouvir um grunhido curto e baixo que após alguns segundos se repetiu, ela correu na direção do barulho. E encontrou o Husky escondido no armário de ferramentas que ficava no quintal, debaixo de uma bancada. Respirou aliviada ao vê-lo bem.

            – Hey, o que aconteceu? – O acariciava em silêncio.

            Um trovão violento foi ouvido, e ela rapidamente pegou na coleira do animal o puxou na direção da casa, mas Lord começou a latir desesperado tentando correr na direção contrária, sem a menor vontade de entrar na casa. Por que aquele comportamento repentino? Ela não sabia. Não fazia ideia, e pensou que pudesse ser apenas um susto.

            Com muito esforço o puxou para dentro e fechou a porta, mas o cão não parava de latir e rosnar querendo sair da casa. Estranho. Um temporal forte começou a cair lá fora, com trovões violentos e raios brilhantes cortando os céus. Parada em frente a porta de vidro, vendo o cachorro desesperado, a chuva e a ventania forte lá fora, ela recebeu uma mensagem no celular. Era Henry.

            Avisando que, por conta da chuva inesperada, estava preso no trânsito e se atrasaria para voltar naquela tarde.

            No mesmo instante, Carla decidiu chamar a filha para ficar perto dela, apesar de tudo era apenas uma criança que poderia ficar realmente com medo de estar sozinha em um cômodo daquela casa tão grande, durante uma chuva tão forte.

            Ela deixou o celular sobre a estante da sala e se direcionou às escadas. Já no topo, no início do enorme corredor de quartos as luzes piscaram, e Carla decidiu buscar uma lanterna. Rapidamente desceu as escadas e no armário da sala, pegou uma das lanternas guardadas lá dentro e se pôs a subir novamente.

            No meio do trajeto, ao invés de as luzes deligarem de uma vez, começar a piscar incessantemente. O cão agora latia mais alto, com uma agressividade que ela nunca tinha visto Lord ter antes. As pernas bambeavam agora, no meio do corredor.

            Quando conseguiu finalmente chegar na última porta do corredor, pintada de rosa com desenhos de borboletas coloridas, as outras portas se abriram sozinhas e Carla congelara de medo. Elas batiam com violência.

            De uma vez, abriu a porta do quarto de Aira e o que viu a fez gritar. Estava apavorada de tal forma que não conseguia se mover. A lanterna caiu de sua mão e ela desabou de joelhos. Os olhos arregalados, as mãos frias e ela suava.

            A pequena menina estava sentada no chão, no centro do tapete rosa felpudo. A lâmpada piscava. As janelas abertas batiam com a força do misterioso vento que entrava, criando um círculo de folhas mortas e papéis. Formas sombrias giravam em torno dela. Aira levantou a cabeça que pendeu para o lado da porta, encarando a mãe com os olhos de tal negritude, que copiada o próprio vazio, sangue começava a escorrer de seus olhos.

            Carla gritou de horror e as luzes se apagaram de uma vez. Impressionantemente, o teto do quarto se desintegrava e ao olhar para cima, de sobressalto, o que viu se parecia com o centro de um tornado, mas um tornado estranhamente negro com centenas de formas escuras vagando, flutuando em círculos emitindo sussurros incompreensíveis. A menina começou a falar coisas desconexas, como que se entoasse um cântico em um idioma desconhecido, que nem deveria existir nesse mundo. Seu corpo se levantou do chão, ela não parava de repetir aquelas coisas. E abriu os braços.

            Um raio negro a acertou em cheio, com tamanha força que Carla foi arremessada para trás, sua vista embaçou e um zunido não saía de seus ouvidos pelo estrondo do impacto. Foi quando tudo escureceu. Tudo ficou silencioso.

            O cão já não latia. As luzes explodiram. O quarto da menina destruído completamente. E as sombras já não estavam mais lá. Apenas o corpo de Aira estirado no chão. Sem vida.

            Após um período imensurável de tempo, Carla abre os olhos, sentia dor por todo o corpo e não ousava se mover. Mais à frente, sobre o corpo de sua pequena filha, outra sombra surgia.

            Pequena. Densa. Etérea.

            Que parecia olhar diretamente para ela. Podendo olhar através dela.

            Carla sentia que algo estava sendo sugado dela. E seus olhos começaram a pesar, até se fecharem de uma vez.

            Aira nunca pertencera àquele mundo.

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