sexta-feira, 29 de junho de 2018

A Casa ao Lado - O final




    Nem todos os tipos de pessoas levantam suspeitas sobre alguma coisa. Ninguém suspeitaria de um cara bonito, na faixa dos vinte ou trinta anos, bem vestido e boa pinta. Mas qualquer um que observasse uma pessoa dessas vivendo só em uma casa pouco cuidada e que dirige um carro velho e enferrujado, suspeitaria de algo. Porém, nem todos naquele bairro observavam tão bem quanto a jovem Emily.

    Ela queria descobrir de uma vez o que o homem fazia naquela casa, mas não podia tentar fazer isso usando uma aproximação casual. Sentia ser perigoso de mais.

    Emily permaneceu observando do jeito que estava fazendo e no dia seguinte, um sábado ensolarado, ela levou o cachorro para passear novamente. Sua tia estava ficando animada com aquilo, apesar de achar estranho. Ela sempre deixava a estranheza de lado quando pensava que a pequena sobrinha poderia estar apenas desenvolvendo algum afeto pelo animal de estimação. Sendo isso ou não, ainda era muito cedo para ter certeza de qualquer coisa.

      Sendo 15:40 da tarde, Emily sabia que o vizinho não estaria em casa e aproveitando que quase ninguém estava na rua naquele horário, ela decidiu se aproximar um pouco mais da janela que dava vista para a sala de estar repleta de cadeiras estranhas.

    Pôs-se então, a caminhar lentamente pelo gramado do vizinho, sentindo, a cada passo, uma tensão florescer. O cão passou a andar mais cautelosamente um pouco mais a frente dela.

    Ao estar perto o suficiente da janela para tocá-la, a adolescente observou com fervor a sala de decoração rústica e simples. As cadeiras eram mais estranhas ainda vistas de perto. Dispostas irregularmente pela sala, deixava o ambiente levemente sombrio. Quando o cão recuou e começou a latir para a janela, ela achou melhor voltar antes que alguém a visse.

    Ela deu meia volta a tempo de chegar na porta de casa no instante em que vira o carro do vizinho dobrar a esquina para voltar a casa. Emily estranhou. Passara tanto tempo assim observando a sala?

    Já passava das sete da noite e a jovem se encontrava sentada em sua cama analisando seu quadro de informações. Ela nunca descobriria o que acontecia na casa ao lado se ficasse apenas olhando. Precisava encontrar uma forma de entrar. O vizinho parecia ser muito gente boa, então, se simplesmente fizesse papel de criança sem ter o que fazer ele poderia chamá-la para um chá. Parece que teria que usar a aproximação casual de qualquer forma. Mas tentaria isso no dia seguinte. Estava um pouco tarde para investir.

    (...)

    Domingo, três da tarde em ponto.

    Depois que o vizinho a encontrara olhando através de sua janela, realmente a convidara para um chá com biscoitos, movida a curiosidade, ela aceitou de pronto.

    Ao entrar na casa sendo seguida pelo homem, que agora tinha um nome o qual poderia chamá-lo: Richard; Emily sentiu-se tensa quando entrou na sala. O homem pediu que aguardasse na sala para que ele pudesse buscar as coisas, ela então, sentou-se no sofá de couro preto e colocou-se a observar mais ainda. Seus olhos de falcão passavam por todo o cômodo, guardando o máximo de informações que conseguisse.

    – Desculpe, fazê-la esperar – Richard chegara sorrindo, carregando uma bandeja cheia de coisas que deixou sobre a mesa de centro. – Não sabia de qual chá gostava então trouxe três. Qual prefere?

    – Camomila. – Emily sempre contida e desconfiada.

    Ele então serviu-a e em seguida encheu uma xícara de café preto para si, finalmente acomodando-se em sua poltrona. Emily notara o nível de sua calmaria.

    – Você não é muito de conversar, não é mesmo?

    – Não.

    – Certo. Eu era como você na infância. – Comentou. – Tem muitos amigos no colégio?

    – Eu não frequento a escola.

    Emily tomou um gole de seu chá e calou-se. Um momento de silêncio se fez presente. Richard pousou a xícara agora vazia sobre a bandeja na mesa de centro.

    – Sabe, Emily, eu percebi que anda a observar-me – a jovem fitou-o. – Sabe, eu não gosto nenhum pouco de ser observado obsessivamente como você vem fazendo faz seis meses. – Ele suspirou. – Eu tenho muito problema com isso. Vou te contar uma história: houve um tempo em que eu fui noivo de uma moça e tinha uma mulher no meu trabalho que era louca por mim e por isso me observava muito. Um dia ela me atacou no trabalho e eu acabei traindo a minha noiva, mas então pensei "se ninguém souber, nada acontece". Eu sumi com ela. E realmente funcionou muito bem, até uma segurança achar o momento todo registrado em um vídeo de uma câmera de segurança, ela ia espalhar sobre isso então tive que dar um jeito também. E tudo estava indo bem de novo, sabe? Mas aí algumas pessoas começaram a descobrir outras coisas sobre mim e eu precisei agir novamente.

    Richard levantou-se e colocou-se a andar em círculos pela sala. Emily permanecia quieta, sua mente estava a mil. "O que ele fez com essas pessoas?".

    – A minha família acabou descobrindo sobre as coisas que eu fiz e eu tive que consertar a situação. – Richard gesticulava muito enquanto falava. Um brilho estranho nublava seu olhar.

    – Eu tenho que ir para casa – Emily deixou a xícara na bandeja e levantou-se afim de sair dali.

    – Eu mudei de cidade, Emily, e descobri uma nova forma de arte – ele impedia que ela saísse apenas com um olhar, Emily sentou-se novamente. – Eu mesmo fiz estas cadeiras se isso te causa tanta intriga.

    Ele passou as mãos levemente sobre o encosto de uma das cadeiras. A adolescente passou a encaixar as peças do quebra-cabeça.

    – Eu busco o material necessário a cada duas semanas em um lugar que não posso falar muito sobre. – Ele sorriu para ela. – Eu gostaria muito de tê-la conosco, Emily. Você é belo material.

    O sorriso de Richard tornara-se tão sombrio quanto doentio e de uma única vez tudo passou a fazer sentido para a jovem Emily. Ela mal pensou ao pegar a faca de pão da bandeja e enfiá-la no sofá repetidas vezes para então puxar com desespero o forro do mesmo. Richard sorria observando a adolescente finalmente entendendo o que acontecia ali.

    Emily quase caiu para trás quando abriu um buraco no sofá. Seu coração batia tão rápido que ela sentia-se tonta.

    Sob o forro do sofá de couro, escondido pelo enchimento fofo haviam ossos.

    Ossos humanos emendados formando o esqueleto do sofá inteiro. Sem ao menos pensar direito, correu e arrancou o estofado de uma das cadeiras próximas e encontrou a mesma coisa. Ossos.

    Tudo fazia sentido agora. Ele realmente não buscava ração toda semana, ele encomendava corpos. Os sacos de lixo malcheiroso estavam cheios de couro e pele humana que ele descartava, já o churrasco...

    Emily sentia o estômago revirar.

    Ela levantou e correu para a porta, mas antes que pudesse abri-la, Richard a segurou por trás. Ela tentou gritar, mas ele tapou-lhe a boca. Tudo que podia ouvir eram os latidos do cachorro do outro lado da porta trancada. Emily foi arrastada para o porão da casa e depois de ver todas aquelas ferramentas e restos dos corpos usados na confecção das cadeiras e provavelmente todos os móveis da casa, tudo ficou escuro.

    (...)

    Emily estava sumida por mais de três meses quando vários indícios e algumas poucas testemunhas levaram a polícia até a casa do vizinho Richard. Nada teria sido encontrado se o cachorro não se recusasse a sair do lado de uma cadeira bonita e decorada em tons de azul e cinza.

    Dentro da casa foram encontradas mais de 50 ossadas de pessoas diferentes, transformados em móveis, principalmente cadeiras. Inclusive, a família dele. Além disso, outras peças produzidas por ele foram encontradas em muitos outros lugares da cidade.

    Richard foi condenado à pena de morte pelo assassinato de mais 90 pessoas.

segunda-feira, 25 de junho de 2018

O lugar de onde eu vim


Tudo aqui parece-me tão peculiar.
Um lugar que possui uma beleza do qual eu nunca fui privilegiado a observar antes. Um lugar onde tudo é tão singelo e tão... efêmero, que passa a ter uma beleza extraordinária, aos meus olhos.
            Tantas coisas dos quais eu gostaria de poder vivenciar, tal como os seres tão simples e de intelecto tão limitado; que sobrevivem deste lugar. E apesar de tudo isso, eles são os verdadeiros sortudos na história, vivendo alheios ao que está sua volta.
            Alheios ao que “vem antes” e ao que vem “depois”. Eles mal conhecem e entendem as coisas como elas realmente são, preocupam-se apenas com que acham que deve receber tamanha atenção. Contas, dinheiro, suas crias. Eles crescem sendo induzidos a se importar apenas com o que seus semelhantes mais antigos impuseram sobre sua sociedade, com seus olhos voltados apenas para um único lugar e os pés sempre no chão. Eles crescem com o único propósito biológico de procriar, dando importância de mais para os ganhos financeiros. Eles não olham para o além. Eles têm medo do que podem encontrar no ao redor. São singelos, e efêmeros.
            Às vezes me pego pensando no que eles fariam ou o que aconteceria com seu psicológico se soubessem sobre o lugar de onde eu vim.
            Um lugar onde o “nada” nunca foi tão, literalmente, assustador.
            Onde a esperança deixa de existir. A maldade não sobrevive, mas que também não existe um bem. Não há luz e nem escuridão. Onde o tempo não existe.
            O lugar do qual me refiro vai contra tudo o que os humanos acreditam. Eles de nada sabem. De nada entendem.
            Nunca houve o tal paraíso e muito menos um inferno. Apenas um vasto espaço ao qual nada se parece. Nenhum som. Nenhum cheiro. Nenhuma sensação.
            Lá, somos apenas nós e nossa consciência. Buscando algo que nunca poderemos encontrar, refletindo sobre tudo o que um dia já pudemos viver. Entendendo a nossa própria existência.
            Há muito, vago por aquele lugar, já estava ao ponto de perder o que ainda me restava da sanidade, até que cruzei o que Os Que Vieram Antes e Depois de Mim tanto buscaram: a fronteira.
            O lugar que separa o Nada do Tudo. De onde tive acesso a tudo que existe e já existiu. O que me salvou de enlouquecer e me tornar uma sombra, fazendo parte daquele lugar repugnante, manchado de loucura.
            Eu estive em todo lugar. Eu estou em todo lugar. Observando tudo o que vem e o que vai. Tudo o que deixou de existir e ainda existirá.
            Vaguei tanto pelo Nada, que minhas noções de tempo, espaço e existência já não são mais a mesma. Tão manchado e perdido que não sei mais o que eu fui. Um humano, um animal, um ser místico. Eu posso ter existido em todo lugar. Posso ter vindo de toda e qualquer realidade e dimensão. Eu posso ter sido tudo o que existe e deixou de existir assim como também posso ser tudo o que foi, é e será.
            Não há um ser supremo e também não sou um ser supremo, pois nada crio ou transformo. Tudo que faço é observar.
            Eu vi tudo o que todo ser humano fez e é. Eu conheço todas as suas mais infinitas versões nas mais infinitas realidades e dimensões.
            Se há uma coisa que posso afirmar é que não existe um real sentido em tudo isso. Não há uma razão, um ser supremo e nem mesmo uma unidade de tempo de verdade.
            E mesmo que no Tudo hajam formas de vidas e existências diferentes, no final o Tudo, ainda assim, é como o Nada.
            E todos nós nos perderemos no vazio e em todo lugar.
            Isso se eu não for toda forma de vida.

domingo, 24 de junho de 2018

A Casa Ao Lado (parte 1)




Emily havia mudado-se para um dos bairros mais tranquilos da cidade. Quase nada acontecia por ali, era quase um lugar de velhinhos, não que não houvessem alguns jovens também.

Ela era mais uma adolescente, cerca de 15 anos apenas. O que a levara até ali era, de fato, um trágico acontecimento: ela havia perdido os pais. Um acidente de carro.

Desde aquilo, ela não era mais a mesma Emily de antes. Filha única do falecido casal, não costumava conversar. Não socializava. Nem ia a escola. A jovem se isolava cada vez mais do mundo, a cada dia que passava, mais ela se distanciava da família. A casa no qual agora moraria, era de sua tia que tinha filhos gêmeos que preferiam não incomodar a prima recém-chegada, pois sabiam pelo que ela havia passado.

Seis meses se passaram então. E a garota agora só saía do quarto para usar o banheiro, a tia levava-lhe as refeições pois Emily não mais descia para comer. Ela estava preocupada com a sobrinha. Talvez a adolescente fosse, realmente, precisar de acompanhamento psicológico. Ela parecia estar em depressão.

Mas não era bem isso o que acontecia.

Emily havia descoberto um novo hobbie. Espionar o vizinho da casa ao lado pela janela do quarto. Havia algo de errado com ele e com aquela casa, e a jovem, para distrair-se de sua perda, tentava descobrir o que era. Fazia diversas anotações e também montara um quadro onde tentava ligar os fatos que tinha em mãos.

Duas vezes por semana, por exemplo, o vizinho saía de carro e voltava horas depois. Ele parava o carro na frente da casa e transportava sempre dois enormes sacos de ração para cachorro, para dentro da casa. Seria normal.

Mas Emily sabia que ele não tinha animais de estimação. E não parecia pretender ter algum. Mais estranho do que isso ainda, era que uma vez por semana o vizinho levava um grande saco de lixo preto para fora da casa, o saco sempre emanava um cheiro forte de algum produto de limpeza e mais alguma coisa que ela não conseguia discernir. E depois disso fazia um churrasco sozinho.

Em seis meses de observação, Emily ficava cada dia mais intrigada com tudo aquilo.

"O que esse homem faz?", era o que sempre se perguntava, porém, nunca encontrava uma resposta.

Naquela tarde agradável de sexta-feira, sua tia pediu que ela levasse o cachorro para um passeio (em uma tentativa de tirar a sobrinha do quarto). Emily pensara imediatamente no vizinho, passear com o cachorro seria a desculpa perfeita para analisar a casa direito, afinal, ela não tinha uma boa vista para as janelas da frente, apenas para uma de um corredor sempre escuro.

Andando com o cachorro pela calçada, depois de aceitar tudo aquilo, ela sabia que naquele dia o vizinho sairia para voltar com os grandes pacotes de ração apenas às 16:30h. Faltavam cinco minutos para que ele pegasse o carro e saísse e, sentada na calçada fazendo carinho em seu cão, ela esperou.

14h.

O vizinho abriu a porta para pegar o carro e acenou sorridente para a jovem que apenas levantou a mão em resposta. Assim que ele sumiu de sua vista, Emily caminhou vagarosamente com o cão até a frente da casa dele. Ela notou que ele possuía muitas cadeiras. Cadeiras em vários tamanhos e formas. Isso era estranho.

Intrigada. Voltou para cara e foi logo anotar sobre sua descoberta enquanto aguardava a hora em que ele voltava.

(...)

16:30.


O carro velho e enferrujado estacionou em frente à casa ao lado. Com um binóculo que pegara de seu primo, ela se posicionou e observou-o pegar um dos sacos e jogar sobre o ombro direito.

O saco de ração estava disforme. Não parecia nem um pouco haver ração ali dentro. Havia outra coisa.

E ela descobriria de alguma forma.